“Queremos hospitais, cultura e progresso - não queremos ser a lixeira nuclear da Europa”

Em 1987, o governo espanhol estuda a hipótese de instalar um laboratório experimental para Armazenamento Terminal de Resíduos Radioativos de Alta Atividade-ATRRAA, junto à fronteira portuguesa. A localização pretendida era a vila de Aldeadávila de la Ribera (Salamanca, Espanha), situada na bacia hidrográfica do Douro Internacional, a cerca de 4 km da fronteira portuguesa, responsável, na época, pela distribuição de água a quase metade dos 10 milhões de portugueses (REYNA, 1987).

 

A escolha deste local foi criticada por alguns especialistas. Se, por um lado, a qualidade impermeável dos granitos existentes nessa zona poderia garantir o isolamento do depósito para períodos da ordem de 50.000 a 500.000 anos, em função da longa vida de alguns isótopos contidos nesses resíduos e do seu decaimento para níveis susceptíveis de não causar danos às populações e ao ambiente, por outro, a estabilidade sismo tectónica do Domínio do Douro Internacional, onde Aldeadávila se situa, foi posta em causa por não se coadunar com os critérios das próprias centrais nucleares. Receava-se a fratura dos granitos, tornando-os assim permeáveis à radioatividade (RIBEIRO, BARRIGA e CABRAL, 2008).

 

A este projeto estava associado um pedido de investimento de US$ 5,6 milhões  proveniente de fundos comunitários europeus. Esta decisão originou uma manifestação de cerca de 3.000 pessoas em Zamora, e um dia depois, já eram cerca de 30.000 os espanhóis e portugueses que protestavam em Salamanca sob o slogan: “Queremos hospitais, cultura e progresso - não queremos ser a lixeira nuclear da Europa”. A tensão política cresceu de tal forma que, a 3 de abril de 1987, o vice-presidente do governo provincial foi sequestrado durante 30 horas na sala de reuniões do município de Aldeadávila, como medida de pressão sobre o governo de Madrid (LA GACETA DE SALAMANCA, 2012).

 

Em Portugal, nesse mesmo ano, foi aprovada a Lei das Associações de Defesa do Ambiente (Lei n. 10/87), sob o impulso do Ano Europeu do Ambiente (1987), conferindo-lhes enquadramento legal e apoios específicos. No mesmo ano, assistia-se igualmente à consolidação das Organizações Não-Governamentais de âmbito nacional – Associação Nacional de Conservação da Natureza-Quercus e Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente-GEOTA - as quais se tinham já mobilizado para alguns conflitos que então eclodiam, como foi o caso de Aldeadávila (SCHMIDT, 2008). Porém, o abandono do projeto do ATRRAA faria desaparecer essa mobilização da sociedade civil.

 

Porém, onze anos mais tarde, a denúncia feita pela Comissão Antinuclear e Ambientalista de Salamanca, de que a zona fronteiriça voltaria a ser cogitada, reacendeu as mobilizações contra a escolha desta localização. Mais uma vez, portugueses e espanhóis irão demonstrar uma forte recusa em receber resíduos nucleares na zona fronteiriça. Na origem desta denúncia estava a discussão de uma lei no Senado espanhol que daria plenos poderes à Empresa Nacional de Resíduos Radioativos-ENRESA para impor a localização de um cemitério nuclear. De notar que os técnicos da ENRESA não consideraram a implantação de tal depósito incompatível com o fato de estar localizada dentro de um parque natural, de acordo com uma lei portuguesa promulgada naquela altura. Efetivamente, o Decreto-lei n. 8/98, de 11 de maio, tinha criado o Parque Natural do Douro Internacional na parte portuguesa. Neste contexto, observa-se do lado de Espanha fortes resistências para a criação de uma área natural protegida, o Parque Natural de Arribes del Duero (AVANTE, 1998), o que só se concretizou em 2002.

 

Em 1998, o Partido Social Democrata-PSD apresentou um requerimento ao Presidente da Assembleia da República-AR, solicitando esclarecimentos aos ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Ambiente sobre esta questão, referindo: “são inequívocos os inúmeros e graves riscos que o desenvolvimento de semelhante projeto causaria na saúde pública, no ambiente e na economia do nosso país”.

 

Questionava-se sobre as iniciativas que o governo português iria adotar com vista à salvaguarda dos interesses nacionais (PSD, 1998). O Partido Ecologista Os Verdes-PEV também toma uma iniciativa semelhante, onde sublinha "as gravíssimas consequências no plano ambiental, social e económico deste projeto, já tão contestado no passado" cuja "concretização iria constituir uma permanente ameaça e risco para toda a região, assim definitivamente condenada no futuro" (AVANTE, 1998).

 

Também a Igreja Católica não se manteve indiferente. Assim, na época em que os protestos começaram, a população de Freixo de Espada à Cinta, a vila portuguesa mais próxima de Aldeadávila é mobilizada para a sacralização daquele território. O Bispo da Diocese de Bragança, D. António Rafael, exortou os fiéis a recorrerem também à ajuda divina e resolveu pagar uma promessa para que a proteção de Nossa Senhora do Douro mantivesse afastada a ameaça nuclear espanhola sobre o Douro Internacional. Promessa essa que culminou, em 2002, com a colocação de uma estátua de Nossa Senhora do Douro no miradouro natural de Penedo Durão, um dos pontos mais visitados, para zelar dia e noite pelo rio partilhado por portugueses e espanhóis (DIÁRIO DE TRÁS OS MONTES, 2002).

 

Enfrentando igualmente fortes resistências internas, o governo espanhol tenta desde então encontrar uma solução para o depósito dos resíduos nucleares da ENRESA (FRAGROSO, 2006).

 

Em 2006, a população de Peque, uma pequena aldeia espanhola banhada pelo rio Negro, que por sua vez desagua no rio Douro, situada a 80 km de Bragança, organizou protestos depois de ter conhecimento, pela comunicação social, que o presidente da junta da localidade manifestou à ENRESA disponibilidade para acolher a instalação da lixeira cemitério nuclear. A contrapartida em jogo era de 12 milhões de euros por ano, a criação de 500 postos de trabalho durante a instalação do depósito de resíduos e ainda a criação de um centro tecnológico, que poderia representar mais 150 postos de trabalho (FRAGROSO, 2006).

 

 

Esta decisão deu origem a críticas por parte dos autarcas do distrito de Bragança que defenderam o afastamento do cemitério de resíduos da zona de fronteira, e a escolha de uma localização junto às zonas onde a energia nuclear é mais utilizada, como a Catalunha ou Madrid (AGÊNCIA LUSA, 2006).

 

No debate espanhol surgem vozes a favor e contra o projeto, questionando-se a sua rentabilidade económica, o seu possível impacto social, e a sua segurança (ANDRÉS, 2010).

 

A ENRESA continua a estudar novas localizações alternativas à de Aldeadávila, optando por manter os resíduos radioativos armazenados em instalações de superfície apropriadas e continuamente monitorizadas. Esta manutenção tem sido seguida até que seja encontrada uma solução para o armazenamento subterrâneo em formação geológica adequada. Tem sido defendido que esta deverá resultar num esforço de cooperação científica e tecnológica internacional, à escala da Europa ou mesmo mundial (RIBEIRO, BARRIGA e CABRAL, 2008).

 

Em 2013, um requerimento, apresentado à AR pelo PEV, questionou o governo sobre o processo de licenciamento de um outro projeto sobre urânio, este de mineração, na região de Salamanca (a cerca de 100 km da fronteira portuguesa), muito perto do projeto de Aldeavilla, que tem tido desdobramnetos vários que são tratados em texto próprio neste site em Mineração Urânio Retortillo. .

 

 

Referências Bibliográficas

 

ANDRÉS, José Pichel. É impossível que haja um acidente em um cemitério nuclear. Agencia Iberoamericana para la difusión de la ciencia y la tecnologí-DICYT. Salamanca. 2 fev. 2010.

ABREU, Carlos. Mira Amaral defende solução Ibérica para nuclear. Expresso, 04 set. 2008.

AGÊNCIA LUSA. Bragança rejeita cemitério nuclear espanhol junto da fronteira. RTP notícias. 3 ago. 2006.

AVANTE. Lixeira nuclear ameaça Douro. Avante n. 1275, 7 mai. 1998.

DIÁRIO DE TRÁS-OS-MONTES. População de Freixo de Espada à Cinta paga promessa com 16 anos, 26 nov. 2002.

FRAGOSO, Ana. Aldeia espanhola unida contra autarca que quer na terra um cemitério nuclear. Público. 5 ago. 2006.

LA CRÓNICA DE SALAMANCA. Villavieja conoce la verdadera cara de las minas de uranio, La crónica de Salamanca, 16 mar. 2014.

LA GACETA DE SALAMANCA. Se cumplen 25 años del secuestro de Luis Calvo Rengel. Salamanca, 8 abr. 2012.

LUSA, Ambientalistas insistem no risco de mina de urânio espanhola e querem posição do Governo. 18 mai 2017.

LUSA. Municípios raianos contestam construção de mina de urânio próximo de Salamanca. 18 mai 2017.

PSD. Projeto de instalação de um cemitério de resíduos nucleares em Aldeadavilla de la Ribeira, junto a fronteira portuguesa [Requerimento n. 535/VII (3.a) – AC]. Portugal, AR-Assembleia da República, Partido Social Democrata-PSD, 21 abr. 1998.

REYNA, Patrick. Portuguese Protest Spain's Search For Nuclear Site Near Border, The Associated press, 7 jun.1987.

RIBEIRO, João. BARRIGA, Fernando. CABRAL, João. Sismotectónica e Segurança Nuclear: o caso do Douro Internacional. Geonovas nº21, pp 11-14. 2008.

SCHMIDT. Luísa. Ambiente e políticas ambientais: escalas e desajustes. In: Villaverde, Manuel, Wall, Karin, Aboim, Sofia e Silva, Filipe Carreira da (Eds.), Itinerários: A Investigação nos 25 Anos do ICS, pp. 285-314. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais 2008.

 

30 jun. 2017.

Bibliografia
Vídeos
Mapa
Associações/Movimentos
Fotos

INFORMAÇÕES GERAIS

 

Duração: 1987 -

Região: Espanha

Distrito: Salamanca

Localização: Aldeadávilla

Grau de intensidade: 5/5

GPS: 41.2202, -6.6136

 

Instituições/Empresas

RESUMO

Em meados da década de 1980, as associações portuguesas mobilizaram-se contra a instalação de uma lixeira de resíduos nucleares junto à fronteira portuguesa, no município de Aldeadávila de la Ribera, província de Salamanca (Espanha). Em 2014, surgem novos protestos de portugueses provocados pelo anúncio da abertura de uma mina de urânio a céu aberto na mesma região espanhola, em Retortillo.

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Portugal: Ambiente em Movimento

Um projeto de cooperação entre Oficina de Ecologia e Sociedade (CES/UC), CETEM (MCTIC/Brasil) e SOCIUS-CSG (UL)

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