"Incineradora? Nem obrigados!"

Estarreja é um município que possui 108,17 km² de área e 26997 habitantes. Localizado no distrito de Aveiro, a sua sede é a cidade de Estarreja, que fica na freguesia de Beduído e Veiros e possui 7500 habitantes. É uma zona onde a atividade agrícola familiar de subsistência tem um relevante papel (FERNANDES, 2011).

 

Foi na freguesia de Beduído que, a partir da década de 30 do século XX, instalaram-se as primeiras indústrias que iriam compor o parque industrial-químico de Estarreja, que concentra algumas das mais significativas indústrias de alto risco do país. Estes riscos relacionam-se com a contaminação das águas e solos da região, com fugas de gases tóxicos e com a possibilidade da ocorrência de acidentes graves (RODRIGUES, 2002).

 

Foi neste contexto que se desenvolveu o conflito em torno da construção de uma incineradora de resíduos industriais que durou entre 1994 e 1997 e mobilizou a população local numa luta vitoriosa contra a instalação desta estrutura.

 

No início da década de 90, organizou-se um concurso público internacional para o projeto, construção e exploração de um Sistema Integrado de Gestão de Resíduos Industriais composto por uma unidade de incineração, dois aterros para resíduos industriais e estações para recolha e armazenagem temporária dos resíduos. Inicialmente, Sines era a localização prevista para a incineradora. No entanto, devido à forte contestação que emergiu nesta localidade, foram incluídas novas opções nos estudos referentes à incineradora, dentre os quais se encontrava Estarreja (FERNANDES, 2011).

 

Foi em julho de 1994 que, ante a possibilidade da instalação da incineradora em Estarreja, surgiu a associação local "Esta He Regia" (futura Cegonha) que empreendeu protestos com ampla mobilização popular. Em janeiro de 1995, enquanto decorria o período de debate público do Estudo de Impacte Ambiental-EIA da incineradora, esta associação participou de um colóquio intitulado "O Ambiente em Estarreja, o Passado e que Futuro?" em que apresentava a problemática referente à estrutura e mencionava a ausência de apoio por parte de outras associações do país. Em abril, na ocasião de uma manifestação em Estarreja, a Associação Nacional de Conservação da Natureza-QUERCUS manifestou apoio à causa local. Em maio foi anunciada a escolha definitiva de Estarreja para sediar a incineradora (RODRIGUES, 2002). Ante a divulgação desta informação pela ministra do Ambiente, foram organizadas pela associação local duas ações judiciais, uma para suspender o ato de localização e outra para impossibilitar o licenciamento da atividade (FERNANDES, 2011).

 

O movimento contra a incineradora teve apoio de cidadãos, do Jornal de Estarreja, principal jornal local, e de alguns políticos. Em contrapartida, o presidente da Câmara Municipal de Estarreja era a favor do empreendimento e entrava em confronto com os ambientalistas locais (RODRIGUES, 2000 apud FERNANDES, 2011). Dois meses depois do anúncio da escolha de Estarreja, a cidade recebeu a visita de um representante da associação Greenpeace, mencionado nos meios de comunicação como um "especialista em resíduos". Tal fator relacionava a causa local a questões e instituições de caráter global, contribuindo para a amplitude do movimento e da apresentação dos argumentos que contestavam a instalação da unidade térmica de tratamento de resíduos industriais (RODRIGUES, 2002).

 

Foi ainda em 1995 que o governo do Partido Socialista-PS acabaria por aceitar, num primeiro momento, o sistema integrado proposto pelo anterior governo do Partido Social-Democrata-PSD, que definia Estarreja como o local onde iria ser construída a incineradora (NUNES e MATIAS, 2003).

 

Constituiu-se em Estarreja a Comissão de Luta Contra a Instalação da Incineradora, desta comissão participaram inicialmente, além da Esta He Regia, outros dois movimentos de cidadãos: a ONG Cegonha e o Movimento Estarreja Limpo. Foi através da assunção da identidade da associação Cegonha, que se encontrava legalizada, mas inativa, que os líderes do "Esta He Regia" decidiram otimizar os recursos. Esta ONGA local desenvolveu ao longo destes três anos diversas ações no sentido de impedir que a decisão do governo fosse concretizada: emitiu comunicados, organizou um abaixo-assinado com mais de 5 mil assinaturas, realizou um colóquio, uma manifestação pública e um buzinão e pintou um mural alusivo ao tema. Nestas manifestações, a associação invocava a saúde e o ambiente como bens que seriam ameaçados pela construção da incineradora e os quais era fundamental proteger (RODRIGUES, 2000). Num boletim informativo sobre a incineração, de 1995, a associação esclarecia que do material que seria incinerado, somente cerca de um por cento era produzido por Estarreja e que a geração de empregos com esta construção não seria significativa. Alertava também para o risco de intoxicação por dioxinas que poderia ser causado pela incineração. Questionava-se também se o custo da minimização dos efeitos da indústria química na região nos 50 anos deveria então comprometer mais 50 anos de impactos causados pela incineração (MOVIMENTO ESTA-HE-REGIA, 1995).

 

Em 1997, o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia-MAOT do governo socialista anunciou o fim do projeto da incineradora reiterando a procura de uma nova solução: a coincineração (incineração dos resíduos industriais em cimenteiras). As contestações mantiveram-se, pois era questionada a incompatibilidade entre o custo do tratamento dos resíduos industriais perigosos e os impactos negativos que traria à saúde pública. Em 1988, a Assembleia da República recomendou ao governo que suspendesse os processos de coincineração em cimenteiras e foram revogadas todas as decisões referentes às localizações escolhidas para sua implementação, devendo-se buscar alternativas para a solução da questão dos resíduos tóxicos e não tóxicos. Futuramente esta decisão foi revista e o governo optou por implementar o processo de coincineração em algumas localidades do país (como Souselas e Outão), gerando novas contestações.

 

No caso da luta contra a incineração em Estarreja, a população local saiu vitoriosa. Os contornos deste conflito mostram como uma causa que emergiu de forma local conseguiu conectar-se a problemáticas globais de modo a fomentar a reflexão sobre as escolhas para o tratamento dos resíduos industriais como uma questão ambiental, mas também social, política e económica (RODRIGUES, 2002).

 

Esta luta insere-se num quadro mais amplo de contestações direcionadas à Política Nacional de Tratamento de Resíduos Perigosos em Portugal, no âmbito do qual se formou a Coordenadora Nacional contra os Tóxicos, um projeto para a luta contra este tipo de soluções para o tratamento dos resíduos (incineração e coincineração), e do qual participaram os Cidadãos e Cidadãs Contra a Incineradora - Setúbal; CAT's de Portugal - Cercal do Alentejo; Água Triangular - Aveiro; Comissão de Luta de Vagos; Comissão de Luta e Defesa de Midões – Gondomar; Grupo Lontra-  Santo André - Sines; Cegonha -Associação de Defesa do Ambiente de Estarreja; Movimento Esta He Regia - Estarreja; Rede Metropolitana Contra o Lixo - Porto; Associação Terra Viva; Comissão Ad Hoc de S. João da Talha – Loures (RODRIGUES, 2002).

 

Atuando juntamente com outras associações de diversas partes do país, a Cegonha tornou-se protagonista deste movimento e ampliou sua atuação para além da questão da incineradora, que determinou seu surgimento. Estarreja apresenta contaminação do ambiente por diversos tipos de substâncias tóxicas para a saúde, nomeadamente decorrente de resíduos industriais perigosos que foram acondicionados a céu aberto ou liberados para o ambiente sem qualquer tratamento. Apesar das modificações dos processos industriais e de medidas, como a construção de um aterro para acondicionar estes resíduos, e também de compensações monetárias que as indústrias dão a alguns cidadãos (nomeadamente o pagamento da conta de água de algumas famílias), o problema de contaminação ainda persiste sem haver contestação com visibilidade por parte das populações locais e associações (FERNANDES, 2011).

 

Bibliografia

 

FERNANDES, Lúcia de Oliveira. Complexidade, incertezas e vulnerabilidades: estudo de áreas contaminadas habitadas em Portugal e no Brasil. Tese de doutoramento em Sociologia na Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, 2011.

 

NUNES, João Arriscado; MATIAS, Marisa. Controvérsia científica e conflitos ambientais em Portugal: o caso da co-incineração de resíduos industriais perigosos. RCCS-Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 65, p. 129-150, 2003.

 

MOVIMENTO ESTA-HE-REGIA. Folheto informativo sobre a incineradora. Movimento Esta-He-Regia Associação Cegonha, 9 jun. 1995.

 

RODRIGUES, Maria Eugénia. Ambientalismo em Portugal: atores e recursos no "caso da incineradora de Estarreja". Atas do IV Congresso Português de Sociologia, CES-Centro de Estudos Sociais, FE-Faculdade de Economia, UC-Universidade de Coimbra, 2000.

 

RODRIGUES, Maria Eugénia. Ciência, Públicos e Ambiente: o discurso "científico" dos movimentos de protesto ambiental. Sociedade e Cultura 4, Cadernos do Noroeste, Série Sociologia, n. 18, v.1-2, p. 271-290, 2002.

 

30 de junho de 2016

Bibliography
Maps
Associations/Movements
Images
Institutions/Corporations

GENERAL INFORMATION

 

Period: 1995 - 1997

Region: Centro

District: Aveiro

Localization: Estarreja

Intensity level: 4/5

GPS: 40.7566, -8.5709

 

ABSTRACT

When word got out that Estarreja was being considered as the location for an industrial waste incinerator, the local population quickly and vehemently opposed this possibility. The conflict lasted for three years, until 1997 - the year it was announced that the facility would not be built. Despite the persistence of environmental pollution problems that pose a risk to the population's health, there are currently no visible protests.

Under construction

"Incinerator? No thanks!"

Back
R_RI_Estarreja_6.jpg
R_RI_Estarreja_5.jpg
R_RI_Estarreja_4.jpg
R_RI_Estarreja_3_INICIAL.jpg

Portugal: Ambiente em Movimento

Um projeto de cooperação entre Oficina de Ecologia e Sociedade (CES/UC), CETEM (MCTIC/Brasil) e SOCIUS-CSG (UL)

  • Conflitos Ambientais

  • Apresentação

  • Equipe

  • Produção Científica

  • Eventos

  • Linha do Tempo

  • Recursos

  • Contato

  • More

    Pesquisar / Search

    English